Estou em cena.
Meus pés tocam o chão, sem senti-lo. Meus olhos procuram algo para ver, não vejo. Perco a consciência do meu corpo, não estou entregue, não estou integrado nas minhas ações, na trajetória do jogo. Sou um espectador distante, ditando as regras, determinando caminhos, estabelecendo resultados. Tudo é visto e lido pelo espectador, a minha resistência, defesa e julgamentos.
Aprendo que a cena não é o lugar para se perguntar: "Sou ator? Não sou ator?", a cena é o lugar para ser e estar, para escutar, responder, se colocar em relação, conectar. É preciso confiar no espaço do risco, se permitir ao erro, transformá-lo pela aprendizagem. Qual é o teatro certo? O melhor teatro? O mais necessário e precioso? Perguntas que não devem ser respondidas pelo artista, porque não movem a base do seu trabalho, não é o seu ponto de chegada, o eldorado a ser conquistado.
Ser artista e não ser escravo de uma forma, vassalo de uma idéia, não ser impositivo com as crenças, com o jeito de se fazer, com o "assim é que tem que ser", com o meu teatro. O meu teatro não é, e nunca será, melhor que o teatro(S). O teatro das muitas possibilidades, dos muitos manifestos, plural – quero aprender a dançá-lo. A cena é o espaço da aprendizagem, aprendo que preciso aprender sem culpa, com o erro – que é poesia, que também é da natureza do teatro e da vida. Aprendo a necessidade de aprender a encontrar no outro não os seus pensamentos sobre o que sou e faço, o que o outro pensa e sente sobre o que faço não me pertence, o outro tem todo o direito de formular sobre mim as suas verdades, mas eu não tenho o direito de transformar as minhas verdades sobre as verdades dos outros em absolutas. O primeiro passo a ser dado em cena é confiar no olhar do outro, mesmo quando vem com o desafio, julgamentos, um olhar que torce contra, que pretende ferir, não ter melindres e receios para este olhar. A confiança no outro começa pela confiança em si. É o que me falta para estar em cena. Confiar – em mim, na cena, no processo, no outro. A confiança é responsabilidade minha, se eu não confio é por não ser confiável. Enquanto existir um deus superior e absoluto, o certo, a obediência, o julgamento se fará interruptor da expressão, mas quando existir o vazio, sem formas e conceitos, o não medo do enfrentamento e atravessamento, então o julgamento poderá ser transformado em ferramenta - em não julgamento - da expressão.
Não abandonamos a nossa história, não enterramos o passado, nada é tão só bom ou ruim, a poesia está em transformar. Como eu transformo a vontade de matar em dança sensível, amorosa e delicada? Entre tantos outros desafios, o teatro me convida para este.
Pensei em me abandonar no teatro, em interromper a minha trajetória enquanto ator/intérprete..., sim este seria o caminho mais fácil. Mas percebo que este não é um pensamento aliado das minhas necessidades deste instante. Esperar do outro a melhor crítica sobre o melhor do meu teatro é me fechar para a provocação que me leve ao estado da transformação. Como suportar ouvir e compreender? Responder a crítica com a ação, esvaziar a cabeça dos ressentimentos, e agir, atuar, não se abandonar na primeira queda, se permitir cair sempre, é caindo que se aprende a levantar, a caminhar, a cair aceitando e aprendendo a queda. Um ator não responde com a desistência, ele amadurece, se alia aos erros, se permite aos pontos de vistas possíveis, ainda que o machuquem, o provoquem, então ele coloca a ferida em cena, convoca a dor e deixa a cena dançá-las. É se despindo para o acontecimento, que eu participo do acontecimento, que eu aconteço enquanto expressão do acontecimento.
"Para existir basta abandonar-se ao ser
mas para viver
é preciso ser alguém
e para ser alguém
é preciso ter um OSSO,
é preciso não ter medo de mostrar o osso
e arriscar-se a perder a carne." Antonin Artaud
Como me desconceitualizar?
Rafael Guerche, São Paulo em 29 de maio de 2010, sobre a aula do dia anterior com Antônio Rogério Toscano na Escola Livre de Teatro
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