DE QUANDO DESPERTAMOS
EM UM OUTONO AUSENTE DE ABRAÇOS
e
SOBRE O CORAÇÃO, UM MANIFESTO
(primeiros ensaios)
Quando o frio voltar a tocar o meu corpo, quero ao menos sentir um abraço que me aqueça. Depois que você foi embora permaneci vitima de uma solidão arrebatadora, por vezes somente o silêncio me basta. As imagens estão vivas dentro da minha cabeça, companheiras da minha memória.
Querido Peter, era uma gélida tarde de maio quando roubaram o seu sorriso e suas doces canções. Este é o preço que se paga por viver em busca dos sonhos que parecem nunca vir.
Já faz algum tempo que vivemos fugitivos das violações físicas e das torturas da alma.
Era maio e resolvemos permanecer juntos, acreditávamos ser mais fortes quando não sós. Invadiram as nossas casas, queimaram os nossos pertences, espancaram nossas mulheres e assassinaram muitos dos nossos companheiros.
Não acredito mais nos homens e estou farto de um Deus que sempre está ausente.
Muitos de nós estão enlouquecendo. Que mundo é este que sacrifica os seus?
Não há porta, nem janelas, não existem saídas.
Ontem sentia dentro de mim uma dor que partia de algum lugar que ainda não sei onde é.
Sentia saudades.
Não há remédios, não há cura.
O cheiro do sangue ainda está nas minhas mãos, eu o sinto. O seu corpo jogado sobre o meu, minhas mãos em seu peito tentando estancar o seu sangue.
Querida Ana, estamos todos saudosos, sentimos muita falta do nosso querido Peter.
Pelo amor de Deus, não se entregue tão sofrivelmente à loucura, você precisa se cuidar. Ainda estamos em tempo de revolução, precisamos ser fortes, não podemos deixar que façam de nós suas próximas vitimas, seus próximos números de derrotados.
Antes eu acreditava que uma simples dor bastava para que o nosso mundo acabasse. A saudade resolveu cantar em meu coração uma ópera de partida, um hino de tristeza com acordes silenciosos.
Em todos os momentos eu o vejo, ainda me sorri , me convida para dançarmos juntos, me sinto em seus braços, quando desperto estou gritando o seu nome, grito para ele me escutar, mas está tão distante...distante.
Em tempos de guerra o amor suplanta as dores
Difícil mesmo é a distância, a saudade e o medo de perder na ausência o amado que foi
Não desejo amar heróis, homens que abdicam a própria vida correndo o risco de não serem lembrados pela história e por seu próprio povo
Ou destinados a terminarem nas cabeceiras das nossa camas, com seus nomes estampados em um livro que ignoramos ler
Muitos escolhem a guerra como caminho, outros são arrastados sem escolhas
Por que na guerra esquecem das mães e esposas? Esquecem dos filhos órfãos de seus pais? Esquecem do estômago que em fome dói? E assassinam a esperança de uma manhã em que livre se caminha pelas ruas?
Eu estava nu e ferido. Os gritos eram incessantes e ensurdecedores, atravessavam o local onde eu estava, não eram ouvidos por mais ninguém.
Seguraram os meus braços com bastante força, me amordaçaram, sufocaram os meus gritos, depositaram em meu corpo todos os seus ódios, eu era para eles uma peste que precisava ser eliminada de suas vidas, representava um mal que estava se alastrando e apenas com a força estancaria, quebraram os meus ossos, chutaram minha cabeça e meu estômago, podia sentir o gosto do sangue em minha boca, descarregaram em meus nervos altas quantidades de descargas elétricas, me penduraram com a cabeça para baixo.
Fiquei fraco, só, senti frio, fome, tinha medo de morrer, não porque a morte me causa um incômodo, mas não poderia dar a eles o prazer de ser mais uma vida interrompida por suas brutalidades.
Se alimentavam com minha dor e saciavam a sede com o meu sangue.
Ainda sinto o meu corpo dolorido, não consigo apagar da memória todos os abusos.
Sim, eu sobrevivi...
Mas estou me sentindo morto, impossibilitado de agir.
O grito parado em minha garganta está sufocando, engasgando...
O que é a liberdade?
Onde ela mora?
Qual sua cor, seu cheiro?
E o tamanho?
Será um pássaro voando alto no céu?
Um rio correndo ao encontro do oceano?
Por que se esconde?
Não é para todos?
É para alguém?
Quem, onde e como é a liberdade?
Existe?
Se existe, como é o existir da liberdade?
As relações humanas e sociais estão contaminadas pela obsessão ao poder, pela ânsia de dominação do Outro e do Mundo. O poder está institucionalizado e hierarquicamente organizado, os que gozam de sua proteção agem desmesurada e abusivamente, com a certeza de que estão impunes de quaisquer consequências recorrentes dos seus excessos. O intrigante é conferir nos discursos libertários o mesmo fascismo julgado e atacado pelos extremistas e dignos revolucionários. Nem todos lutam uniformemente pela mesma causa e isto é o que concerne a liberdade, esta tal liberdade impressa em nossas utopias, a liberdade intolerante e inflexível é a base de todo e qualquer poder absoluto.
Quando o caminho termina, para onde é que se segue?
Quando a canção termina, o que é que se canta?
E os sonhos... O que vem depois?
Peter, as suas poesias ainda estão espalhadas pelas ruas, no amanhecer era possível avistar pela janela o vento as soprando e guiando para outros caminhos.
Meu jovem poeta e sonhador, o que fizeram com você? O que estão fazendo com cada um de nós?
Não podemos caminhar lá fora, fuzis estão apontados para nossa espera, muitos estão sendo torturados e suas dores são expostas como exemplo e solução ao que estão chamando de “subversão”.
É possível ouvir atravessar por estas paredes os gritos dos torturados e a respiração ofegante e cansada dos torturadores.
Os gritos estão me cortando como navalha, estou asfixiada, preciso voltar a respirar. Não aguento mais fechar os olhos e recordar os que já se foram e como se foram, eu estive presente em seus últimos segundos e suspiros.
Permanecer presa, exilada e fugitiva entre estas paredes me traz a sensação de que os próximos últimos segundos serão os meus.
Não é justo o que fazem conosco, não somos bichos, acredito que sejamos humanos como todos os outros os são!
Às vezes penso no quanto fui um inútil ao sair da minha pequena cidade para tentar ser “o artista do seu tempo”, o que eu consegui? Quando me vejo percebo para onde caminham os idiotas que querem revolucionar com suas canções, poesias e pecinhas.
Não é o “revolucionário” quem faz a revolução, mas sim a revolução que faz o “revolucionário”, por que eu demorei tanto para perceber isto? Antes eu tentava levar a vida como um artista em um destes pequenos teatros, escrevia, cantava, tocava, criava os meus personagens, era um “amante” dos palcos. Fecharam as portas do que andam chamando por aí “teatrinhos de esquerda”, agora eu estou aqui, esperando que a porta de algum “teatro sério” e “comprometido” com o bom entretenimento social possa me ser aberta.
(Uma Janela)
*“Mocidade presa
A tudo oprimida
Por delicadeza
Eu perdi a vida.
Ah! Que o tempo venha
Em que a alma se empenha.
Eu me disse: cessa,
Que ninguém te veja:
E sem a promessa
De algum bem que seja.
A ti só aspiro.
Augusto retiro.”
* CANÇÃO DA TORRE MAIS ALTA ( poesia de Arthur Rimbaud )
Peter, acredito estar preparado para repousar ao teu lado e ao lado dos nossos companheiros que também se foram.
O que ainda pode me prender a este mundo?
Fomos traídos, Peter, traídos dentro das nossas próprias casas. E também dentro de nossas próprias casas fomos acusados, sentenciados por um “crime” que estamos cometendo. Que crime é este? O sonho e o desejo de construirmos um lugar para descansar e nos sentir amparados pelas nossas próprias forças?
Esta janela é minha companheira, o que me divide entre este mundo onde não posso mais ser percebido e o meu repouso eterno.
Quero que o meu salto seja como uma canção, dessas que quando passam por nós são tão silenciosas que precisamos fazer o maior esforço para ouvir. Quando o meu corpo tocar o chão, que os ventos e a vozes não se calem, mas permaneçam ecoando.
Sim, eu posso saltar sem estar sozinho. Você pode vir também.
Quando estender a minha mão é só tocar e segurá-la com força, eu não vou soltar antes de chegarmos no chão. Você vêm?
“Fecha os olhos’. Disse-me. Então fechei os meus olhos. Peter, eu estou com medo. “Não sinta medo, estou aqui ao seu lado, não estamos sozinhos. Porque está tremendo?” . Ele me levou junto ao seu peito, nossos corações batiam fortes e acelerados, talvez fosse a primeira vez que sentia um abraço tão forte e acolhedor de um homem, naquele instante conseguia sentir que estava atravessando para o desconhecido. O medo aumentava, ouvíamos os gritos de liberdade sendo ecoados pelas ruas e em meio a tantas vozes e passos nos olhamos, ficamos durante alguns instantes tentando entender o que estávamos fazendo. Peter sentia-se tranquilo, sabia o que desejava e pretendia.. “Deixa o coração agir”. Depois destas palavras senti os nossos lábios se tocando. Ali mesmo sentimos os nossos pêlos e saliva, nossas mãos, braços e pernas, nosso sexo.
Estou diante do abismo e me disponho a saltar para dentro deste buraco infinito que se apresenta à minha frente. Não compartilho sua partida. Ao meu lado e dentro do meu peito há um largo e dolorido vazio.
Dobrei as suas roupas e as coloquei com delicadeza no interior de sua mala junto aos seus outros pertences também guardados por mim, tive que engolir o pranto, pois as lágrimas não poderiam amolecer a pedra encravada em seu peito.
O que existe de belo em uma borboleta não são suas diversas e surpreendentes formas e cores, e sua disposição de voar sobre as folhas e flores. Mas sim o seu processo de metamorfose, quando encasula-se e decide em que transformar-se; momento em que deixa de ser uma primitiva lagarta e encontra um outro sentido, uma outra possibilidade para sua existência. Depois de sua transmutação a borboleta parte para um ritual não solitário e ao mesmo tempo revelador e essencial, no qual a presença de outras borboletas reforçam a sua condição de existir, então doa-se inteiramente, experimenta o contato com o outro (também metamorfoseado) e com a vida. E em meio a esta orgia de cores e asas surge o vento que as sopra por entre os galhos secos, perdem-se em meio à paisagem e aos outros seres. Escolhem, transformam e cumprem os seus destinos.
Tempos de exaltação ao silêncio, a palavra é bala que fere e mata.
Peter, eu te amava, continuo te amando. Mesmo doendo, o corpo dói, o grito dói, a prisão dói. Eu não esqueço, não te esqueço.
Me fizeram calar, mas o desejo de ser e sentir palpita no peito.
Grito.
Os gritos atravessam estas janelas e paredes, ninguém parece ouvir, a cidade lá fora está surda.
Sinto falta dos seus abraços.
O que fizeram dos nossos abraços?
Estou com frio e ainda lembro dos instantes em que seu corpo e presença me aqueciam. Lembro das suas palavras, meu acalanto, meu apoio. Se estivesse aqui, minhas feridas estariam cuidadas e minha dor amenizada...
(pausa)
Peter, eu te amo.
Me Abraça
Me dá a tua mão, me dê os teus braços
Encosta o teu peito no meu
Me abraça
Me abraça dentro, me abraça forte
Daquele jeito que só você sabe me abraçar
Me dá os teus olhos, me dá o teu sorriso
Canta os meus versos
Me abraça
Me abraça dentro, me abraça forte
Daquele jeito que só você sabe me abraçar
Me conta os teus segredos, derrama as tuas lágrimas
Desperta a tua ira
Me abraça
Me abraça dentro, me abraça forte
Daquele jeito que só você sabe me abraçar
E se morremos, morremos juntos
Porque vivemos, vivemos juntos
E se passamos, passamos juntos
Porque ficamos, ficamos juntos
PEÇA CORAÇÃO – Heiner Muller
Um- Posso pôr meu coração a seus pés.
Dois- Se não sujar meu chão.
Um- Meu coração é limpo.
Dois- É o que veremos.
Um- Eu não consigo tirar.
Dois- Você quer que eu ajude?
Um- Se não incomodar.
Dois- É um prazer para mim. Eu também não consigo tirar.
Um- (Chora)
Dois- Vou operar e tirar para você. Para quê que eu tenho um canivete. Vamos dar um jeito já. Trabalhar e não desesperar. Pronto – aqui está. Mas isto é um tijolo. Seu coração é um tijolo.
Um- Mas ele bate por você.
CENA I
Você vem sempre aqui?
Eu estou sempre por aqui, já não me recordo mais quanto tempo faz que eu estou aqui, perambulando, daqui pra lá, de lá pra cá, estou sempre aqui, sempre.
Você já perdeu alguma coisa e depois ficou procurando, buscando, procurando? Alguma coisa que tenha alguma importância, que te faça sentido procurar? Eu faço isso todos os dias, fico aqui procurando esta alguma coisa que eu perdi e que já faz tanto tempo que eu não lembro mais o que eu perdi, como eu perdi e pelo o que estou procurando. Eu não sei por que eu ainda estou aqui há tantos dias, há tantos meses, talvez tantos anos. O tempo é uma coisa engraçada, ás vezes ele passa e a gente nem percebe, e ele não passa sempre silencioso, ás vezes faz um estrondo, um imenso barulho, e mesmo assim a gente permanece não percebendo.
Desculpa, eu nem deixei você falar. Você vem sempre aqui?
pausa
Eu sempre te esperei, sabia? Fiquei aqui todo este tempo te esperando. Que bom que você veio. Eu sabia que um dia você ia chegar. Por que você demorou tanto? Acha que foi bom eu ter ficado aqui todo este tempo te esperando? Eu poderia exigir de você, ao menos saber por onde andou, e por que me fez esperar tanto. Poderia, não poderia?
pausa
Que bom que você chegou. O que eu fiz aqui todo este tempo? Fiquei te esperando, e procurando, buscando, procurando o que eu ainda não achei, não encontro, eu não sei o que eu estou procurando, a única coisa que sei é que eu perdi e em algum lugar por aqui, eu fico procurando, buscando, procurando. Eu ficava te esperando, mais agora você chegou, que bom que você veio, não é?
Você trouxe? Eu guardei o seu aqui comigo. E o meu você trouxe? Cadê? Deveria estar com você, não deveria? O seu está aqui comigo, você quer, não quer? O meu deveria estar aqui, eu esperei você e você veio, você trouxe, não trouxe?
Eu estou sempre por aqui, não vai embora, a gente tem todo o tempo do mundo.
Eu devo ter deixado por aqui, eu sei que foi por aqui, mas onde, cadê?
Está um pouco frio. Você sente frio? Fica aqui um pouco, vai passar. Eu estou sempre por aqui.
CENA II
2. Me dá o seu coração?
pausa
1. Eu devo ter deixado o meu coração por aqui, onde sempre descansam os meus rins, os meus pulmões, o meu fígado, as minhas vísceras.
2. Eu cruzei um caminho onde estava um coração, batia fraco, lento, mas vez ou outra tinha espasmos, então pulsava ágil, fazia um enorme barulho, eram muitas as suas batidas, volumosas, estridentes.
Cadê o seu coração?
1. Me dá o meu coração?
2. Eu devo ter deixado o seu coração por lá, abandonado, com frio e triste de solidão.
1. É por isso que o meu peito está vazio, oco. Você abandonou o meu coração. E agora o que eu ponho no lugar, com o que eu preencho este buraco raso entre os meus pulmões?
Você pode trocar este vazio pelo seu coração? Deixa o seu coração morar no vazio dentro de mim?
2. O meu coração pulsa no meu compasso, o meu coração pertence ao meu organismo prisão dos meus sentidos, o meu coração é a célula morta que respira a minha solidão. O meu coração é a minha obrigação. É meu o CORAÇÃO.
Cadê o seu coração?
1. Perdi o meu coração. Quando antes deveria estar nas tuas mãos. Eu não tenho mais o meu coração. Deixei o meu coração no deserto seu, na tempestade sua, no escuro da sua noite. O que eu posso te dar? O meu vazio é o que tenho para te dar. Deixa o meu vazio morar no teu coração?
CENA III
2. Você lembra?
pausa
Lembra?
pausa
1. Era noite, e nós estávamos lá. Não havia mais ninguém por perto, é o que ainda consigo lembrar. Éramos eu e você, apenas. E um silêncio, disso eu também me lembro, talvez o que ainda é mais vivo em minhas lembranças, aquele silêncio profundo como aquela noite quieta.
Faz muito tempo?
2. Não sei, parece que sim.
1. Então nossos olhares se cruzaram, sentia que as nossas mãos se buscavam, uma a outra, o nossos dedos e pés confusos dançavam uma dança que nos levava para a direção um do outro. Nós dois seguíamos, ainda que relutantes, tímidos, apreensivos, tementes, talvez, ao nosso encontro.
2. E então nos encontramos. E era noite, noite como agora ainda é.
Por que você foi embora depois? Eu ainda fiquei ali por muito tempo, sabia?
1. Por que eu deveria ficar, se sabia que logo partiria? Mais cedo ou mais tarde, não queria ficar ali para sempre. Você quis?
2. Não, acho que não. Só queria que não tivesse ido e me deixado lá sozinho.
1. Agora eu preciso ir.
2. Por que? Fica, mais um pouco, não vai demorar tanto.
1. Não posso. Não vou ficar, tenho que ir.
2. Você volta?
1. Quando?
2. Não sei. Quando quiser.
1. Não sei se volto.
2. Por que?
1. Desculpa, eu preciso ir.
2. Posso ir também?
1. Onde?
2. Com você. Onde você vai?
1. Não. Não pode. Não vou á lugar nenhum.
2. Você não volta, eu sei que não vai voltar.
1. Tchau.
2. Adeus.
CENA IV
1. Deixa eu te abraçar?
2. Não.
1. Eu só preciso de um abraço.
2. Você precisa, não eu. É você quem quer, eu não quero.
1. Você me ama?
2. Não.
1. Mas você disse que me amava, não disse?
2. Não, não disse. Você inventou tudo isso, eu não faço parte deste seu imaginário. Sinto amor sim, mas não por você. Eu amo minha mãe, minhas irmãs, meus amigos, as pessoas próximas a mim, você eu não amo, talvez um dia, mas agora não.
1. Eu só queria poder ficar junto de você, te abraçar, só isso.
2. Eu não posso te ajudar. Eu já disse que não te amo. Eu te dei o coração e você me feriu, com o teu olhar, com a tua agressividade, com o seu jeito de ser.
1.Os teus olhos e tua agressividade também me feriram. Eu só vim pra dizer que te amo, pra te dar um abraço. Mas é sempre não.
pausa
Vou embora, não volto mais aqui.
2. Não precisa decidir assim, talvez um dia eu consiga te amar, não precisa ser pra sempre, decidir que não vai mais voltar, que eu não faço mais parte da sua vida.
1. Eu preciso ir. (abraça o outro, é empurrado)
2. Você precisa deste abraço não eu, eu não te amo.
(O 1 sai)
Não vai embora.
CENA V
1. Eu desejo me desprender das amarras, correntes e mordaças. Vou me libertar da prisão que é estar junto de você. Sou sua escrava, seu colo para desafogar as tristezas, sua esposa, sua senhora, sua mulher. Sempre digo sim aos seus caprichos, sempre estou de acordo, tenho que estar de acordo com tudo o que faz e com cada palavra que diz. Estou abrindo as janelas desta casa para deixar outros ares atravessar as nossas vidas, arrombo a porta para me libertar desta condição e do nosso passado. Quero uma vez, ao menos uma única vez, desrespeitar o homem que me domina, ser imoral, agir como uma prostituta libertina. Sim, quero ser uma PROSTITUTA LIBERTINA e te trair, trair a cama, a mesa, o fogão, a cadeira, a sala, o quarto, o seu rosto, suas mãos e pernas, o seu peito. Saia da porta, destranque o portão, me dê passagem. Vou pisar sobre o teu corpo e cuspir nas suas mentiras de amor. Com minhas mãos vou estraçalhar as cartas, os discos e as flores de um romance que nunca existiu. Não me peça ou insista para ficar. Não. Eu não vou permanecer envolvida pelos teus braços, teus abraços me sufocam, me assassinam. Não. Eu não vou ficar.
Não me olhe como se eu fosse uma louca que em poucos minutos vai desistir e recuar. Eu não vou voltar para esta casa e permanecer sendo sua escrava. Não me toque, não me beije, vou morder os seus lábios e me alimentar do seu sangue, quero estampar em seu rosto minha cicatriz e em seu coração ferir com minha dor.
CENA VI
2. Quanto custa o seu coração?
1. Custa o ar que ainda respiro.
2. Quanto custa o ar que respira o seu coração?
1. Custa os meus pulmões.
2. Quanto custa os seus pulmões inflamados pelo ar que respira o seu coração?
1. Custa o quanto eu permaneço, o meu existir insuficiente.
2. Quanto custa a tua permanência, a tua existência insuficiente, dilatadas pelo ar que habita os pulmões que inspira o ar que respira o seu coração?
1. Nada. Nada vale nada, é o quanto custa, é o preço: NADA.
2. Portanto, quanto custa o seu coração?
1. NADA CUSTA O MEU CORAÇÃO.
2. E por que então o procuras? Por que rasteja entre os escombros, destroços e lixos do fim de uma revolução? Por que tateia o escuro feito um cego desenganado pela escuridão? SE NADA CUSTA O SEU CORAÇÃO.
1. Não é o meu coração que procuro, é o seu esconderijo. É o seu prazer indelicado. É uma morte digna para o meu corpo cansado.
Cadê o meu coração?
2. Eu não tenho o seu coração.
1. Por que o meu coração?
2. Nunca senti o teu coração.
1. Qual o peso do meu coração?
2. Não provei o gosto do teu coração.
1. Me dá o meu coração?
2. Não.
É meu o teu coração.
CENA VII
O coração?
Cadê o meu coração?
2. Das minhas muitas manias, esta de achar que você é última sobre a face da terra, a única paisagem em que repousam meus olhos.
1. O meu coração não é um brinquedo seu, não é o seu passa tempo, seu infantil e cruel divertimento. O meu coração não é o seu passarinho de estimação para você prender em sua gaiola prisão.
2. Já não tenho mais meus versos raros, minhas rimas secas e escassas, e já não encontro forma para compor os meus desamores, os teus desafetos, a tua indiferença. Eu sou um invisível para os olhos teus.
1. A regra deve ser subvertida com a exceção. Eu subverto o meu coração. Eu subverto a vontade tua pelo meu coração. Eu subverto a tua vontade meu coração.
Cadê o meu coração? Perdi na guerra o meu coração, na fome pela miséria, em meio a explosão de Hiroshima, perdi num assalto o meu coração, no medo, na dúvida, na incerteza, foi no desacordo que eu perdi o meu coração, perdi o meu coração quando você apareceu, e fez do meu coração a tua propriedade privada, o teu consumo, o teu contrabando, a tua máquina, quando cegou os meus olhos para não enxergar covarde desapropriação.
Queria ser um rebelde e trazer de volta o meu coração.
2. Eu perdi o seu coração em meio a revolução, enquanto os gritos, os corpos, as dores, os abutres, me atravessavam e dançavam sobre a minha cabeça um ballet descontínuo e descompassado. Eu perdi o seu coração em meio a necessidade de liberdade, no ato de um voo abismal. Eu perdi o seu coração em meio as barricadas e comunas, entre os farrapos, o seu coração mergulhado em poça de sangue, afundando, submergindo, cozinhando no ácido dos gases letais dos campos de concentração. Eu perdi o seu coração na extinção da paz, o seu coração guerra, o seu coração destruição, o seu coração desesperança, o seu humano coração extinto.
1. O meu coração paixão, está despedaçado.
O meu coração amigo, está descrente.
O meu coração filho, está órfão.
O meu coração mulher, está solteiro.
O meu coração amante, está louco.
A máquina coração que antes funcionava com os seus mecânicos batimentos, falhou, está fora do ar, desconectado.
2. Os meus dentes presos nas tuas cochas
Mordo os teus lábios, como a tua boca
Com a ponta da língua, cuspo o teu sangue
Sugo o sal do teu suor
Me desmancho no teu gozo
E mais fundo ainda procuro o teu coração
E não encontro. Não encontro o teu coração.
CENA VIII
1e2
Eu toquei os seus cabelos.
Eu pousei os meus olhos nos seus.
Eu fiquei com o seu cheiro.
Eu busquei o seu peito.
E o coração?
Você me pediu o coração, eu te dei. Entreguei nas tuas mãos.
Eu perdi o seu coração. Eu devo ter deixado em algum lugar por aqui.
Ele ainda bate, eu posso escutar. Você escuta?
Só o silêncio.
É o silêncio do meu coração, abandonado ele ficou mudo, mas ainda bate, ele vive por aqui em algum lugar.
Você foi embora.
Eu me distanciei de você.
O que você quer ?
Só quero o meu coração. O coração que você perdeu, maltratou, machucou. Quero cuidar do meu coração.
Era noite. Noite.
O meu coração limpo aos seus pés, batendo por você.
Eu toquei os seus cabelos. Fiquei com seu cheiro. Busquei o seu peito, o seu rosto, a sua boca.
Eu disse que te amava. Você me disse: “Não”. Que não poderia ser.
Decidi que não ficaria.
Eu disse adeus. Você lembra? Eu disse adeus e você disse: “Não. Fica.”
Eu não podia mais ficar.
Eu te amava, tentei te abraçar. Eu me aproximei, você me empurrou, pra longe daqui e de você.
Eu já não lembrava mais disso, eu tentei apagar dos meus pensamentos. Eu quis te esquecer.
Acontece que eu deixei por aqui, em algum lugar o meu coração.
Voltei pra buscar o meu coração. Pra buscar o coração. Nos teus pés.
Cadê o meu coração?
O coração limpo. O meu coração. Que não encontro.
Me dá o coração?
Dramaturgia – Rafael Guerche
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